Mudanças

Uma parte de mim intencionalmente adiou a tarefa de escrever sobre esse marco divisório chamado pandemia de Covid-19. Deixo os comentários científicos para quem é do ramo. Mesmo sofrendo a dor do outro, como fazem as pessoas solidárias, sinto que a questão vai muito além dos aspectos político, sanitário, econômico, relacional. Ainda vai aparecer alguém propondo que mudemos o calendário de 2021 para ano 1 PP (pós-pandemia).

Vou tentar escrever, objetivamente, o que mudou, em linhas gerais.

  1. Pessoas já tinham medo de outras pessoas que parecessem perigosas – assaltantes, terroristas, sei lá. Mas, agora, todo mundo tem medo de todo mundo porque todo mundo virou um perigo para todo mundo. Não é o ar poluído, o mar cheio de lixo nem o alimento com agrotóxico que pode matar a gente em questão de dias: é um vírus que apenas outra pessoa pode nos passar.
  2. Passamos a nos esconder em casa, nós que temos casa, porque não foram poucas as pessoas que perderam o teto e foram parar na rua. Perderam emprego, sustento, abrigo. Estão com medo e precisam de ajuda daqueles que não perderam nada disso. Felizmente a sociedade civil brasileira tem se organizado para ajudar, mas ainda estamos muito no início. Ações solidárias não podem ser esporádicas, elas têm que entrar na ordem do dia das pessoas de bem, cotidianamente. Antes de dormir, precisamos perguntar: a quem foi que consegui ajudar no dia de hoje?
  3. Isolamento e perda de contato físico entre pessoas que se gostavam ou se amavam é uma necessidade. Nem todo mundo está aderindo a isso. Há quem não abra mão, se arriscando a adoecer ou contaminar a família. Ficar sem ver amigos e família por muito tempo, deixar de abraçar as pessoas, é realmente um processo dolorido. Hoje, depois de tantos meses, me peguei pela primeira vez pensando no abraço demorado que vou dar nas pessoas queridas, se é que isso vai chegar a acontecer. Porque pode ser que nada disso dê certo, que a vacina não seja tão rápida quanto o poder de adaptação do vírus, e a gente tenha que passar a conviver com ele à solta até o fim dos tempos. Sim, isso também é possível.
  4. Consegui me adaptar bem porque há muitos anos vivo sozinha. Com a morte do cachorro, parei de sair de casa todos os dias, embora não tenha me isolado – é que consigo dar minhas aulas de alemão 100% pela internet. Vou a farmácia, ao super, a médico, a casa do meu marido – aqui pertinho – e graças a ele e a alguns alunos e amigos queridos recebo minha porção diária de afeto. A mesma que anda faltando a tantas pessoas que começaram a definhar de tristeza e solidão. Contra isso não há campanha que ajude.
  5. Acredito que todos estejamos subestimando o impacto da pandemia sobre a sociedade planetária neste momento. Os danos se espraiarão por décadas. O estrago atinge os corpos, as mentes e os corações. Há quem sinta falta daquilo a que nunca deu valor: aconchego, calor humano, simpatia. Eu me esforço para expressar otimismo e empatia às pessoas indistintamente por meio do olhar e de uma boa palavra. Nunca precisamos tanto disso.
  6. Nas aulas de história tremíamos assustados ouvindo relatos tenebrosos sobre as guerras, especialmente as mundiais, e pasmávamos ao imaginar que alguém conseguiu sobreviver àquele horror. Só que era mais simples quando o inimigo tinha nome, tinha rosto, agora não tem. E não estou falando só do vírus, ele só materializou a falta de proximidade que nós tínhamos estabelecido antes.

Eu me comprometo a voltar aqui e deixar um relato mais positivo, tão pronto eu consiga acreditar nisso. Mas vai precisar acontecer alguma coisa bem forte no sentido contrário. Se estou com medo? triste? aborrecida? descrente? Nada disso. Sinto uma paz apocalíptica de quem tem pouco a perder. Sempre precisei de bem pouco – alguma fé, algum amor, algum trabalho, algum conforto e algum raciocínio – que, com as bênçãos de Deus, nunca me faltaram. Sei que estamos no caminho certo para ajustes fundamentais. Pelo menos é o que me dizem essas tremendas dificuldades.